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Malbec

por Ana Wingert

Malbec, a uva que encontrou seu lar definitivo na Argentina. Com seu perfil “fácil de agradar” conquistou o gosto (e o bolso) dos brasileiros e é um dos pontos de partida para quem está iniciando no mundo dos vinhos.

As origens da Malbec

No século XVI, o jurista e professor universitário de Cahors, François Roaldès, publicou “Le discours sur la vigne”, uma das raras obras vitivinícolas da época, que se refere à presença de vinhas Auxerrois em Cahors há pelo menos 600 anos. Mais recentemente, estudos genéticos mostraram que a Auxerrois, citada naquela época, é na verdade a variedade Malbec de hoje.

O termo Malbec foi usado pela primeira vez no século XVIII. Recebeu o nome do proprietário de uma propriedade vinícola no Médoc, Sr. Malbeck, que divulgou a casta e lhe deu o seu nome.

Nativa de Cahors, no sudoeste da França, onde é conhecida pelo nome de Cot ou Auxerrois, foi a casta favorita de figuras famosas como Leonor da Aquitânia e, mais tarde, Francisco I, que se referiu a Malbec como les plantes du roi (as plantas do rei). Ele plantou vinhas em todo o país, de Fontainebleau à Borgonha.

Com este forte endosso real, mudou-se para a região de Bordeaux, sendo uma das seis uvas utilizadas para criar blends tintos, ao lado de Cabernet Sauvignon, Merlot, Cabernet Franc, Petit Verdot e Carménère.

Dois fatos, porém, levaram ao declínio da popularidade da Malbec na Europa e foi por isso que ela nunca alcançou a estatura global que outras variedades de uvas da França alcançaram.

A primeira, por volta de 1876, foi a devastação causada pela filoxera, praga que destruiu quase todas as vinhas francesas no século XIX. Foi um impacto sem precedentes, uma vez que a região havia sido convertida quase que inteiramente à viticultura nas três décadas anteriores.

O segundo fato foi a grande geada de 1956, uma catástrofe para as vinhas, pois as temperaturas caíram de 25°C durante o dia para -17°C à noite. A geada destruiu a maior parte dos vinhedos em ambas as margens de Bordeaux e arredores.

A Malbec foi replantada em Cahors e continuou a ser popular naquela área, mas a sua fraca resistência às intempéries, doenças e pragas fez com que não fosse a casta preferida em outras áreas. Muitos produtores acabaram preferindo Merlot ou Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc. 

Em 15 de abril de 1971 foi publicado o decreto de classificação Appellation d’Origine Contrôlée (AOC), reservada exclusivamente para vinhos tintos elaborados a partir de uvas Malbec, que permitiu a Cahors ingressar na elite do vinho francês. As especificações que regem a denominação permitem duas variedades de uvas secundárias: Tannat e Merlot, mas a Malbec deve representar pelo menos 70% do blend.

Apesar da sua estrutura densa e intensos aromas de frutas negras, os vinhos de Malbec de Cahors geralmente apresentam um estilo mais elegante e taninos menos marcados.

  • Produtores de Cahors para incluir na sua adega: Clos La Coutale, Domaine de Dauliac, Château de Chambert, Château de Haute Serre, Château de Mercuès, Château du Cèdre, Jean-Luc Baldès, Lacapelle Cabanac, Lamagdelaine Noire, Legrézette, Les Croisille, Pierre Chanau e Vignobles Vellas.  

A chegada da Malbec na Argentina

Embora a Malbec tenha nascido na França, a variedade encontrou seu lugar no mundo na Argentina, expressando todo o seu potencial e características que o diferenciam do resto das variedades presente no país.

Quando os vinicultores argentinos procuravam uma uva para melhorar a qualidade dos seus vinhos na década de 1850, procuraram o conselho do agrônomo francês Michel Pouget, que trouxe uma variedade de vinhas de França, incluindo Malbec. Ao que parece, o clone específico que ele trouxe desapareceu na França e é fato que a uva Malbec da Argentina tem uvas menores e cachos mais compactos que o tipo cultivado em Cahors.

A uva encontrou seu lar ideal na paisagem montanhosa da Argentina; a experiência foi um sucesso maior do que os produtores de vinho poderiam imaginar!

Em regiões como San Juan, Salta e especialmente Mendoza – o coração pulsante da indústria vinícola argentina – a Malbec não apenas sobreviveu, mas prosperou e, em 1962, havia quase 60.000 videiras plantadas em todo o país.

Desde a sua introdução no país, a Malbec tornou-se a reivindicação do país à fama do vinho, com produtores como Catena Zapata, eleita a marca de vinho mais admirada do mundo em 2020, e os seus vinhos vem ganhando cada vez mais reconhecimento global.

Ainda que a Argentina tenha uma variedade de terroirs, não podemos falar sobre o Malbec argentino sem mencionar a arma (hoje conhecida por todos) responsável pelo seu sucesso: as altitudes extremamente elevadas dos Andes.

No sopé andino de Mendoza, os vinhedos estão localizados bem acima do nível do mar, com uma altitude média na faixa de 2.000 a 3.600 pés. Esta configuração é muito mais adequada para a Malbec, que prospera em climas frios e secos e requer boa luz solar para amadurecer completamente. 

É por esta razão que Nicolás Catena Zapata fixou os seus olhos (e os seus vinhedos) nestas grandes alturas, não só plantando uvas nas altitudes médias de Mendoza, mas também assumindo como missão elevar os padrões existentes da Malbec – a 5.000 pés acima do nível do mar, para ser exato.

Embora os viticultores estivessem céticos de que a Malbec teria sucesso neste ambiente, a grande aposta de Nicolás no potencial do terroir valeu a pena. No vinhedo Adrianna de altitude extrema de Catena – “Grand Cru da América do Sul” – o solo superficial rico em calcário, as manhãs enevoadas, as temperaturas mais amenas e o sol mais forte (o que torna as cascas das uvas mais espessas e, portanto, os taninos mais elevados) resultaram em vinhos com mais estrutura, acidez e complexidade.

Ainda que este vinhedo no céu conte uma boa história (e excelentes vinhos), ele também representa algo ainda maior: a busca de Nicolás para dominar a Malbec – e compartilhar o vinho argentino com o mundo.

A realidade da Malbec na Argentina

Atualmente, a Argentina lidera a produção de Malbec com mais de 75% de todos os hectares do mundo. É plantada do norte ao sul do país, desde os vinhedos mais altos do mundo e repletos de cactos de Salta, passando pela Bolívia, até o extremo norte da Patagônia, 3.200 km ao sul.

Segundo dados do Instituto Nacional de Vitivinicultura da Argentina do final de 2023, a área total cultivada era de 188.687 hectares, sendo 60% para as uvas tintas, 22.8% as rosés e 17.2% as brancas.

Com um total de 23.027 vinhedos, a Malbec tinha 46.565 hectares, representando 40.8% das uvas tintas. Mendoza é a província mais importante do país com 84.7%, seguida por San Juan com 6.1% e o restante com 9.2%. 

Desde 1990 a produção de vinhos tintos na Argentina saiu de 42.381 para 113.152 hectares. A superfície cultivada de Malbec em todo o país aumentou mais de 50% no período 2010-2022.

No mercado interno o corte mais comercializado é o Malbec com Cabernet Sauvignon, chegando a 22.6% das vendas. 

Em busca de altitudes mais elevadas, amplitudes térmicas diurnas mais amplas e solos diferentes, sobretudo calcários, os produtores estão investindo no Valle do Uco, a oeste, além de Luján de Cuyo, Gualtallary, Altamira e La Consulta são exemplos de subzonas que estão ganhando cada vez mais destaque no cenário internacional.

Outra mudança importante vem ocorrendo no processo de vinificação. A tendência é de reduzir o carvalho e substituir novos barris por carvalho usado e grandes foudres, além dos investimentos em ovos de concreto e ânforas. Uma boa referência é a Zuccardi, inaugurada em 2016 e projetada para refletir a paisagem rochosa ao redor.

É indiscutível que nunca houve melhor momento para explorar a Malbec argentina. A extensa relação dos produtores abaixo servirá de inspiração para as suas degustações. A boa notícia é que grande parte deles tem distribuição no Brasil.

  • Luján de Cuyo: Carmelo Patti, Casarena, Catena Zapata, De Angeles, Familia Deicas,  Kaiken, Lagarde, Luigi Bosca, Matervini, Matias Riccitelli, Mendel, Terrazas de Los Andes, Trapiche, Trivento, Viña Cobos, Vistalba, Weinert
  • Valle de Uco: Bodega Norton, Bodega Piedra Negra, Doña Paula, Enzo Bianchi, Escorihuela Gascón, Estancia Mendoza, Flechas de los Andes, Huentala, Lindaflor, Salentein, Val De Flores, Vinos de la Luz e Vinyes Ocults.
  • Gualtallary:  Bemberg, El Espinillo, Gran Enemigo Single Vineyard, Michelini i Mufatto e Per Se.
  • Paraje Altamira: Altos Las Hormigas, Bodegas Caro (Catena & Rothschild), Lupa, Teho e Zuccardi.
  • La Consulta: Achaval Ferrer e Altocedro.
  • Tupungato: Rutini e Zorzal. 
  • Patagônia: Chacra, Bodega Noemía e Otronia.
  • Salta: Agustín Lanús, Arca Yaco, Colomé, Etchard, El Esteco, El Porvenir de Cafayate, Tacuil Yacochuya e Valle Arriba.
  • Agrelo e Maipú, departamentos de Mendoza: Argento, Familia Furlotti, Fede, Finca Decero, Penedo Borges e Susana Balbo. E em Las Heras, conhecida por sua paisagem montanhosa impressionante, não deixe de conhecer Uspallata.

Ótimos produtores nas demais regiões

Além da França e Argentina, a uva Malbec está presente em diversos países, tais como Austrália, Brasil, Chile, EUA, Nova Zelândia e Uruguai.

  • Chile tem excelentes rótulos, como: Aresti, Calcu, Clos de Luz, Cousiño Macul, Cremaschi Furlotti, Emiliana, Lagar de Codegua, De Martino, Montes, Morandé, Riveras del Chillán, Tabalí, Undurraga, Viña Chillán, Viña Neyen de Apalta, Viña San Pedro e Viu Manent.
  • No Uruguai, procure por: Giménez Méndez, Pizzorno Family e Viñas del Quintón. 
  • No Brasil, a presença da Malbec é relativamente tímida. Algumas opções são: Almaúnica, Don Guerino, Don Laurindo, Lídio Carraro, Orgalindo Bettú e Vaccaro. 
  • Difíceis de serem encontradas, algumas opções da Austrália: Capel Vale, Happs, John Kosovich, Kooliburra, Little Giant, McGuigan, PepperBox, Quarisa, Windows Estate e Wolf Blass Maker’s Project.
  • O mesmo vale para a Nova Zelândia: Ashridge, Brooksfields Sun Dried, Decibel Testify, Ka Tahi Rangatira, Matawhero Church House e Squawking Magpie SQM.  
  • Nos Estados Unidos, particularmente no Napa Valley e Sonoma: Ancient Peaks, Austin Hope, Charles Krug, Cooper’s Hawk, Darioush, Devil Proof, Doffo, Hess Persson, Jarvis Estate, Justin, Matchbook, Napa Cellars, Pine Ridge, Rutherford Hill, Shadybrook, St. Supéry e Trefethen.

As características da Malbec

A Malbec produz vinhos com acidez média, corpo médio, taninos médio-altos, teor alcoólico médio para alto, em torno de 13%-15% ABV.

Apresenta particularidades diferentes daquelas do seu local de origem, o que se deve a diferenças de clima e solo, características genética de plantas, manejo de vinhedos e métodos de produção. 

Comparados aos Malbecs franceses, os vinhos argentinos são mais frutados e macios (quentes), com textura mais acentuada e taninos mais maduros. Apresentam notas de ameixa madura e outras frutas escuras, tais como amora, mirtillo e cereja.

Muitas vezes são encontrados toques de especiarias e floral (violetas). Se o vinho foi envelhecido em carvalho novo, notas de baunilha, chocolate e café são mais comuns, além de um final de tabaco esfumaçado ou doce.

Esses vinhos podem ter uma tonalidade púrpura profunda marcada na taça, especialmente quando jovens. Faça uma experiência simples: ao final de uma degustação de Malbec, se olhe no espelho e veja se os seus lábios estão azuis.

Os diferentes estilos de Malbec, definidos pela altitude, podem ser monovarietais ou blends para expressar uma determinada área de vinha. Um enólogo pode misturar Cabernet, Merlot ou qualquer outra uva para criar um vinho totalmente novo. 

Os melhores Malbecs da Argentina tem potencial para longa guarda, uma característica decorrente, em parte, ao potencial da uva em tanino e acidez junto com as frutas maduras.

Já em Cahors, a Malbec produz suas expressões mais escuras e tânicas nos solos calcários. Nesta região, cujo clima é mais frio, apresentam um caráter mais rústico com atributos de especiarias, groselha vermelha, framboesa, cereja preta e ameixa. 

Características da viticultura

A Malbec produz cachos compactos de tamanho médio a grande, frutos preto-azulados médios, casca grossa e ricos em taninos e antocianinas. É relativamente fértil, tem brotação precoce e um ciclo de amadurecimento curto. 

Os rendimentos variam de médio a alto de acordo com o local. Tem baixa resistência a correntes de ar e é altamente sensível a pragas e doenças, porém floresce em áreas mais frias de alta altitude tanto quanto em cimas quentes. 

Em altitudes mais baixas, as uvas tendem a ter cascas mais finas e lutam para produzir a acidez necessária para criar vinhos saborosos e duradouros. Áreas de grande altitude com maior amplitude térmica (ou seja, dia quente, noite fria) permitem que as uvas produzam mais acidez. Altitudes elevadas também representam um risco menor de doenças e pragas como a filoxera. 

Harmonização

Quando pensamos em Malbec, a primeira imagem que vem à mente é um belo pedaço de carne. O equilíbrio entre fruta e tanino é o que torna esta variedade de uva tão perfeita com uma carne suculenta e macia. O vinho de Malbec harmoniza muito bem com fraldinha ou filé mignon, pois os perfis de sabor da carne e do vinho combinam perfeitamente, criando uma sensação inebriante.

Outra carne que vai muito bem com a Malbec é o cordeiro, na medida em que o sabor defumado combina com as notas de tabaco que podem ser encontradas no vinho. Também os elementos florais, presentes em muitos rótulos, podem realçar os sabores e tornar a experiência incrível.

A carne gordurosa e o queijo harmonizam perfeitamente com o vinho rico e frutado. Experimente colocar um queijo azul, tal como Gorgonzola ou Roquefort, no seu hambúrguer. 

A gordura encontrada na maioria dos queijos (azuis, Cheddar, Manchego e Asiago são algumas opções) combina perfeitamente com o Malbec, conferindo ao vinho uma textura quase aveludada. Se você quer elevar ainda mais a experiência, combine seus queijos favoritos com algumas cerejas e frutas secas.

Cogumelos, pimentões assados, batata, berinjela, abóbora, espinafre salteado são algumas opções para incluir na harmonização.

Ervas, especiarias e molhos também são indicados. Dentre eles, o famoso Chimichurri, tradicionalmente feito com salsa picada, alho, vinagre, azeite de oliva, pimentão vermelho, orégano e pimenta vermelha. 

Se está pensando na sobremesa, prove um pedaço de chocolate amargo com uma taça de Malbec. O final da sua refeição será incrível e especial! 

Por Olavo Castanha

Olavo Castanha é formado em Marketing e atua no mercado de bens de consumo há 30 anos. Formado em Enogastronomia pela ICIF – Italian Culinary Institute for Foreigners e Sommelier pela Associação Brasileira de Sommeliers – SP, atualmente se prepara para a próxima fase da Court of Master Sommeliers Americas.

  • Texto publicado com autorização do autor.
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Foto: The Wine School

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