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Botrytis cinerea

por Ana Wingert

Botrytis cinerea, um fungo fundamental na produção de um dos vinhos mais complexos de todo o mundo.

O que significa Botrytis cinerea

Botrytis cinerea é um termo técnico de um fungo que gera dois efeitos diferentes sobre a videira e suas uvas. 

Um desses efeitos não é benigno quando a Botrytis se desenvolve em condições de umidade constante, podendo se espalhar de forma rápida (e irreversível), destruindo as uvas. Nestas condições, surge o chamado “mofo cinzento”, praga terrível que ataca os frutos no final de sua maturação.

No segundo caso, quando em condições especiais com temperaturas frias e muita umidade nas primeiras horas da manhã, seguidas de um dia seco e quente, o que é mais comum em regiões costeiras que contam com a névoa de umidade ao amanhecer, surge o efeito benigno do fungo, chamado de “podridão nobre” ou “do bem”. 

Na podridão nobre, a praga faz micro furos na casca das uvas, permitindo que a água presente na polpa da uva evapore, deixando-as desidratadas. O fungo se alimenta tanto dos açúcares como dos ácidos das uvas, principalmente o ácido tartárico, e, como resposta ao ataque, a planta produz mais resveratrol e ácido málico. 

Outras reações químicas ocorrem no processo, como a produção de glicerol, conferindo mais maciez e untuosidade, além dos tióis que trazem notas cítricas de frutas exóticas e o ácido acético com os famosos aromas de esmalte e acetona.

Características da uva botrytizada

As uvas botrytizadas ficam murchas e marrons, com uma aparência não tão agradável. Seu suco, porém, é dourado, doce e precioso. Cada uva precisa ser colhida individualmente e os rendimentos são minúsculos.

Os vinhos resultantes são complexos, concentrados e podem envelhecer durante décadas.

Apesar de serem vinhos doces, apresentam frescor devido ao equilíbrio entre o maior teor de açúcar e a alta acidez, o que os torna ainda mais especiais e longevos. 

A história do vinho botrytizado

Sauternes tem fama mundial, especialmente com o seu produtor ícone, o Château d’Yquem, mas a história dos vinhos botrytizados começou verdadeiramente na Hungria.

No início do século XVI, com a chegada dos exércitos otomanos, o povo de Szerémség (Sírmia, atualmente Sérvia) foi forçado a abandonar as suas casas e alguns deles estabeleceram-se em Hegyalja (outro nome para a região vinícola de Tokaj). Foi assim que a expertise no cultivo da vinha e na produção de vinhos chegou à região.

Na década de 1550, o vinho Tokaj foi introduzido nos mercados internacionais. Comerciantes poloneses invadiram a região e a Corte Real de Viena começou a comprar vinhos Tokaj. Por sua vez, a primeira evidência documental da palavra ‘aszú’ data de 1571, sendo mencionado no testamento da família Garay.

A primeira classificação das vinhas foi concluída no século XVIII, por volta de 1730, e esta lista de vinhas categorizadas por localização e qualidade foi compilada por Mátyás Bél.

A epidemia de filoxera atingiu Tokaj por volta de 1885 e devastou 90% dos vinhedos. Também, em 1920, com o Tratado de Trianon, a Hungria perdeu dois terços do seu território e partes da região vinícola de Tokaj foram anexadas pela recém-criada Checoslováquia. O terceiro golpe ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, quando a agricultura coletiva se tornou a norma sob o regime comunista e os padrões de qualidade diminuíram.

A queda do comunismo desencadeou mudanças radicais também em Tokaj. As categorias tradicionais de vinhos foram reconsideradas e renovadas. Uma nova ênfase em vinhos secos, surgiram engarrafamentos em um único vinhedo e os vinhos espumantes tornaram-se populares. 

Desde 2002 Tokaj está listada e protegida como Patrimônio Mundial da UNESCO.

Tokaji Eszencia, o elixir da longa vida e proclamado o “Rei dos Vinhos, Vinho do Reis”, tem uma extensa lista de admiradores. Desde os Czares da antiga Rússia, Rei Sol Louis XIV, Beethoven, Schubert, Goethe e Voltaire.

São poucas regiões do mundo que tem as condições climáticas ideais para que o fungo se desenvolva, mas novos terroirs são descobertos todos os anos. De todo modo, neste texto, focaremos nos principais produtores da Hungria, França, Alemanha e Áustria.

  • Hungria – A região vinícola de Tokaj está localizada no nordeste do país, na confluência dos rios Bodrog e Tisza, demarcada por um triângulo de montanhas: Sátor, Kopasz e Vár.

A região vinícola é composta por 27 municípios e a área plantada com vinhas é de aproximadamente 5800 hectares, sendo que quase todas as uvas são brancas.

O clima da região é continental. Porém, várias áreas apresentam microclimas claramente distinguíveis devido à proximidade da água e/ou às diversas condições geomorfológicas. 

A atividade vulcânica nas montanhas Zemplén começou há 15 milhões de anos e terminou há 9 milhões de anos. Deixou para trás uma grande variedade de rochas vulcânicas, tornando a área uma região vitivinícola altamente diversificada. Assim, em uma única vinha num raio de cem metros podem ser encontrados vários tipos de rochas diferentes e, nas melhores vinhas, podem existir até dez extratos de solo diferentes. 

Castas brancas que são permitidas apenas para a produção de vinhos tranquilos e espumantes na região vinícola de Tokaj: Furmint, Hárslevelű, Kabar, Kövérszőlő, Sárgamuskotály e Zéta.

Produtores para colocar na sua lista: Barta, Demeter Zoltán, Dobogó, Gróf Degenfeld, Hétszölö, Juliet Victor, Királyudvar, Oremus, Patricius, Royal Tokaji e Szepsy. 

  • França -Sauternes e Barsac são comunas de destaque e serão melhor exploradas em um próximo artigo, dada sua relevância mundial. Por enquanto fica a indicação de alguns produtores, incluindo os da região da Alsácia, onde se encontram vinhos com a especificação SGN (Selection des Grains Nobles), além das famosas apelações Bonnezeaux, Coteaux du Layon e Quarts de Chaume no Vale do Loire.

Barsac: Château Climens, Château Coutet e Château Doisy-Védrines. 

Sauternes: Clos Haut-Perayraguey, Château D’Yquem, Fargues, Gilette, Guiraud, Haut-Bergeron, Lafaurie-Peyraguey, La Tour Blanche, Rabaud-Promis, Raymond-Lafon, Rayne Vigneau, Rieussec, Sigalas Rabaud e Suduiraut.

Alsácia: Agathe Bursin, Domaine Barmes-Buécher, Hugel & Fils, Schlumberger, Schoenenbourg, Schoffit e Weinbach.

Vale do Loire: Belargus, Château de Fesles, Château Pierre-Bise, Domaine de Bellivière, Domaine Huet, Domaine du Petit Métris e Ogereau. 

  • Alemanha – Atacados pelo Edelfäule, como é conhecido o fungo malévolo, os grandes vinhos botrytizados do país são definidos por um perfume maravilhoso e frutas suculentas e doces equilibradas com uma notável acidez.

Riesling, com sua precisão, aromas intensos e complexidades de frutas, especiarias e minerais, é considerada a mais nobre das uvas amigas da Botrytis. Embora sejam tipicamente leves no corpo e no álcool, eles variam desde as delícias picantes, com aroma de limão e ardósia do Mosel, até os Rieslings mais maduros e tropicais de Rheingau, Nahe ou Pfalz.

Para preservar o caráter da fruta primária e a acidez vibrante, os vinicultores alemães normalmente evitam técnicas como fermentação e maturação em carvalho novo, que altera aromas e sabores, ou fermentação malolática, que arredonda o paladar e suaviza as bordas ácidas.

Não é por acaso que os melhores vinhos botrytizados da Alemanha provêm de vinhedos com vista para os rios Mosel, Reno, Nahe ou Meno e seus vários afluentes.

Clemens Busch, Dr. Loosen, Egon Muller zu Scharzhof, Fritz Haag, Joh Jos. Prüm, Markus Molitor, Rheingau: Robert Weil, Schloss Johannisberg e Schloss Lieser são alguns dos excelentes produtores alemães para incluir em suas degustações.

  • Áustria – Em Burgenland, o mais oriental dos estados, um volume de água cria condições perfeitas para a Botrytis: o Lago Neusiedl. O lago raso garante manhãs enevoadas com umidade suficiente para o desenvolvimento do fungo. As aldeias da sua costa são há muito famosas pelos seus vinhos doces. A cidade de Rust até usou vinho doce local, conhecido como Ausbruch, para comprar o seu estatuto de cidade livre ao imperador austríaco em 1681.

Conheça os produtores Heidi Schröck, Kracher e Sattlerhof. Certeza de ótimas experiências! 

Harmonizações com vinhos botrytizados

O Foie Gras é uma das harmonizações mais clássicas com o vinho, tanto servido quente como frio. A acidez do vinho é valorizada pelo sal e gordura do fígado e as combinações com uvas e maçãs agregam ainda mais valor à experiência.

Lagosta, lagostim e carangueijo podem abrilhantar um vinho botrytizado mais evoluído. Mexilhões, ostras com curry e vieiras também são boas opções, assim como peixes pouco gordurosos como o linguado.

Frango em bexiga, ligeiramente trufado, ou pato com cereja, pêssego, uva ou laranja, além de timos (molleja) de vitela também são ótimas sugestões para a combinação.

Clássicas também são as combinações com os queijos fortes, tais como o “bleu d’ Auvergne” ou o Roquefort e Gorgonzola, e os queijos com crosta lavada como “Maroilles” ou o “Munster”. 

Em relação às sobremesas, opte por frutas mais ácidas, como morango, kiwi ou laranja. Além disso, Tarte Tatin, Torta Bourdaloue, Apple Strudel e pâtisserie seca, preferencialmente com amêndoas, são excelentes companhias para o vinho botrytizado.

Curiosidades sobre a Botrytis cinerea

  1. É um fungo do tipo Ascomycota, o mesmo tipo de fungo utilizado na produção de penicilina e de queijos azuis, como o famoso inglês Stilton.
  2. O vinho Tokaji é tão importante para a cultura húngara que é mencionado no hino nacional do país.

Por Olavo Castanha

Olavo Castanha é formado em Marketing e atua no mercado de bens de consumo há 30 anos. Formado em Enogastronomia pela ICIF – Italian Culinary Institute for Foreigners e Sommelier pela Associação Brasileira de Sommeliers – SP, atualmente se prepara para a próxima fase da Court of Master Sommeliers Americas.

  • Texto publicado com autorização do autor.
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Foto: LVMH

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